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A quem interessa “ripar” o IPHAN?

Atualizado: 16 de dez. de 2021

Um vídeo, recentemente divulgado na imprensa, mostra o presidente da República fazendo declarações estarrecedoras em um evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. No dia 15 de dezembro último, declarou ter demitido funcionários do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em resposta à interdição de uma obra da Havan, empresa do conhecido militante bolsonarista, o bilionário Luciano Hang.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

“Tomei conhecimento de que uma pessoa conhecida, o Luciano Hang, estava fazendo mais uma obra e apareceu um pedaço de azulejo nas escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra. Liguei para o ministro da pasta e ‘que trem é esse’? Porque não sou inteligente como meus ministros. O que é Iphan? Explicaram para mim, tomei conhecimento, ripei todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá”, disse, para em seguida concluir: “o Iphan não dá mais dor de cabeça para a gente”.

Difícil decidir o que é mais chocante no episódio: se é o desconhecimento do presidente sobre o papel e a importância do órgão federal; o explícito favorecimento pessoal a um amigo e apoiador (em outros tempos, tal atitude seria facilmente descrita pelo que é: corrupção e clientelismo); o desprezo não apenas pelo órgão, mas por toda a questão do patrimônio cultural envolvida (a forma jocosa como se refere ao “pedaço de azulejo”); a confissão de interferência e aparelhamento da máquina pública, para que sirva aos seus próprios interesses (no caso, os do amigo) e à sua opinião individual sobre o que é ou não importante proteger (assunto sobre o qual confessa sua falta de inteligência). Ou se é o fato de que, ao final de sua declaração, o empresariado ali presente tenha aplaudido tamanhos absurdos.


Esta postagem não tem objetivo de fazer discussão ou proselitismo partidário, mas não pode deixar de condenar, com toda a veemência, o teor de tais declarações. Como empresa dedicada à temática do patrimônio cultural, entendemos ser nossa obrigação esclarecer o leitor (que desejar esclarecimento) sobre aspectos que parecem fugir completamente à compreensão do presidente – de quem se esperaria, no mínimo, se não conhecimento, ao menos disposição de entendê-los.


Primeiramente: o que é o “Iphan, com ph”? O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é uma autarquia federal que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe ao Iphan proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. Criado em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378. Desde sua criação, os conceitos que orientam a atuação do Instituto vêm evoluindo e se aprimorando, especialmente a partir da Constituição Brasileira de 1988, que em seu artigo 216 define o patrimônio cultural (e não apenas “histórico”) como formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. Também fazem parte do patrimônio cultural as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, espaços destinados às manifestações artístico-culturais e, mesmo aos conjuntos urbanos e

sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.


Outra atribuição importante do Iphan é a conservação, salvaguarda e monitoramento dos bens culturais brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio Mundial e na Lista o Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, conforme convenções da Unesco, respectivamente, a Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 e a Convenção do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003. Ou seja, não é pequena a responsabilidade e a importância do Iphan: tudo o que diz respeito à conservação da memória e da identidade do nosso país e do povo brasileiro tem, em alguma medida, relação com a atuação do Iphan.


Escadaria do Rio de Janeiro

E o que é “um pedaço de azulejo”, por que ele é tão importante? Bem, não é possível fazer uma avaliação de importância de algo que nem chegamos a conhecer, mas o órgão conta com especialistas exatamente para fazer essa análise e tomar a decisão. Uma série de critérios devem ser levada em conta: o significado do artefato para a história local (seja pela importância artística, pelo material utilizado, pela técnica empregada, pela época em que foi produzido...), a importância da peça em si (sua raridade, por exemplo, pode ser um fator que aumenta sua relevância), entre tantos outros. É um assunto de especialistas, mas também um assunto que envolve toda a comunidade local. O fato de se localizar onde uma obra havia sido planejada é um mero acaso. A interrupção da obra tinha o único objetivo de permitir a avaliação do “pedaço de azulejo”, para que se pudesse decidir: é uma peça que

precisaria ser protegida? Havia outras? É possível realizar ali a obra pretendida? E se for, de que maneira isso pode ser feito?


A interrupção da obra é apenas uma medida de precaução, e não significaria necessariamente que a obra seria inviabilizada. Eventualmente, poderia ser tomada a decisão de fundamentar uma alteração do projeto (não seu abandono!), a adoção de ações de proteção (para as quais o Instituto teria todas as condições de orientar) e outras. Apenas um sentido muito imediatista de “urgência” dessa obra justificaria a reação do empresário diante de um simples contratempo. Se em lugar de um bem cultural tivesse sido encontrado um duto de gás natural, o que seria feito? “Ripado” o órgão de controle ambiental, ou a chefia do corpo de bombeiros? Em certos casos, o dano possível não pode ser reparado

ou compensado, e é justamente por isso que a cautela se faz necessária. Mas, novamente:

condicionante não significa impedimento!


Ainda é muito difundida a mentalidade que vê esse tipo de precaução como um “entrave ao desenvolvimento”, como um preciosismo com algo de pouca importância. Não é. O desrespeito a princípios - consagrados mundialmente – de proteção e defesa do patrimônio cultural pode sair muito caro a um empreendedor descuidado e que não conte, como Hang, do privilégio do acesso direto ao presidente da República. Na verdade, esse era um privilégio que não deveria beneficiar ninguém em particular, pois diretrizes públicas deveriam ser pensadas e orientadas a um bem coletivo, impessoal, e assim também deveria ser a avaliação de situações como essa.


O “princípio da precaução” ainda parece passar longe do entendimento de parte do empresariado brasileiro – e isso vale para o patrimônio cultural assim como para a proteção ambiental, responsabilidade social e tantas outras esferas. Felizmente, essa cultura imediatista parece estar cedendo terreno em favor de práticas mais respeitosas, planejadas e coordenadas – sustentáveis. Talvez o imediatismo ainda tenha, momentaneamente, muito mais espaço do que deveria nas políticas públicas, e entre os políticos. Mas quem já entendeu que os danos causados por essa forma de atuar podem ser irreparáveis, e nos custar caríssimo num futuro cada vez mais próximo, já está se organizando para atuar de forma responsável e respeitosa.


Sua empresa está pronta para o século XXI?

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